domingo, 19 de agosto de 2012

"Nombarath Vs Ishtar" FINAL


            Passaram-se três dias depois do prazo padrão que levava para chegarem as cartas-resposta dos combatentes, todavia, Alana continuava sem a sua. Não sabia mais o que pensar. Seu coração doía pela preocupação, mas seu cérebro tentava lhe dizer que Ranzo poderia estar morto há muito tempo e que as respostas recentes eram apenas um engodo motivacional de Zhalmyr para que continuasse trabalhando. Uma trapaça, uma peça de teatro de um diretor desalmado, que beirava a brutalidade.
            Hora do pronunciamento oficial do meio da tarde. Todos pararam na fábrica e olharam para o grande televisor. Zhalmyr aparece, faz sua referência e começa a falar. Alana não se mostrava nem um pouco interessada em ver ou escutar o que o charlatão falava, mas sentia sempre uma atração e ansiedade pelo evento. O Soberano falava sobre estarem perto da vitória. Estavam às cercanias do Palácio Real de Ishtar naquele exato momento e que era muito provável que a guerra poderia vir a acabar naquele mesmo dia.
            A euforia era enorme. Até mesmo Alana se sentiu emocionada. Aliviada. Aquele ser humano era um grande desgraçado, entretanto, a vida iria finalmente voltar ao seu ritmo normal. As mulheres, emocionadas, choravam abraçadas e felizes, pois seus queridos amores voltariam para casa afinal. Zhalmyr finalizou o discurso liberando todo mundo do dia de trabalho, demonstrando total confiança de que seu exército triunfaria.
            Após certa confusão, embalada pela alegria, todas conseguiram sair da fábrica. Todos os bares e cafés da cidade abriram e o povo todo, predominantemente mulheres e crianças, estavam nas ruas em expectativa.
            Alana encontrou o vovô em casa e saíram para comemorar a vitória quase certa. Encontraram Leonôra e sua família: mãe e irmão caçula. Ela sentia que tinha algo estranho na história toda. Logo creditou ao possível alívio imediato após anos de apreensão e incertezas. De fato, desde que nasceu vivia sobre as incertezas de uma guerra na qual a pouco mais de duas semanas passou a desacreditar. Uma guerra retratada como épica nos livros de História. Retratada, inclusive, como parte da cultura de Nombarath. Uma guerra arraigada na mente dessas pessoas, que nascem e morrem sob um período incessante de violência e bestialidade.
            Mas, no fundo, mesmo não querendo admitir, sabia que algo estava faltando. Não sabia dizer o que. Era apenas um detalhe.
           
            As dezessete horas, um fato totalmente inédito, saiu então o tão esperado veredicto: A glória de Nombarath sobre a queda de Ishtar. A populção foi pega de surpresa. Alguns não assistiram o pronunciamento, pois não estavam devidamente posicionados próximos a uma televisão, já que não era hora dela ligar. Alana e Leonôra quase que, de tão avoadas e despreocupadas em meio as comemorações antecipadas; em meio a embriaguez, liberada pelos responsáveis, quase a perderam também. O telão da Plaza central acendeu. Logo em seguida Zhalmyr, com os olhos marejados, deu a notícia, e dedicou a luta em memória da adorada princesa Isabela. Disse que ninguém mais precisaria ir às fábricas até o regresso dos soldados, porém, o campo, por ser o responsável pela produção dos alimentos, deveria prosseguir, e seriam devidamente recompensados pelo trabalho árduo. O Soberano agradeceu ao povo e se retirou, deixando e as TVs de toda cidade apagaram instantaneamente, como de costume.

            A noite caiu e, quem não estava dormindo, cambaleava alcoolizado pelas ruas da cidade. Alana e Leonôra estavam na Plaza central ainda, próximas ao chafariz com a estátua de bronze da Princesa Isabela e conversavam. A euforia passara, pois sabiam que Ranzo e Thânos não voltariam. Abraçaram-se e começaram a chorar. Choraram copiosamente por minutos que não sabiam precisar. Quando conseguiram se acalmar, decidiram ir para casa. Leonôra disse que não queria ficar sozinha, dessa forma, Alana convidou-a para dormir em sua casa. Assim, aliviadas pelo choro, felizes pelo fim histórico do conflito, e pela paz que reinaria, rumaram para casa, para o merecido descanso. O Alcool já diminuíra seu efeito, mas, assim que chegaram, tomaram um rápido banho e deitaram-se para dormir no quarto da Alana.
            Durante a noite, Alana escutou barulhos, como pancadas secas em madeira e vidros quebrando, advindos da rua. Estranhou aquilo e foi espiar.
            Quando seus olhos bateram na cena dantesca que acontecia na rua, seu sangue gelou. Eram soldados. Soldados e mais soldados. Por toda a parte. Dezenas. Não. Centenas deles. Centenas de soldados arrombando portas e quebrando vidros. Soldados de Ishtar! Alana, com pavor na voz, correu e foi acordar a amiga.
            - Acorda, Leô! Acorda!!!
            - O que foi, infeliz?! Quer me matar de susto?! – Disse a amiga, acordando de sobressalto.
            - Soldados, Leô... Soldados... Nas ruas... - Alana tremia dos pés a cabeça.
            - Eles chegaram? Eles chegaram?! – Sua voz ia adquirindo uma alegria gradualmente crescente.
            - Cala a boca! – Alana falou com força, mas o som saiu abafado e se tornando agudo no fim, enquanto fazia sinal pedindo silêncio. – São de Ishtar! De Ishtar!
            - O que?!
            - Vem comigo! Temos que acordar o vovô! – Quando terminou de falar isso, um estrondo se fez ouvir. Alguém arrombava a porta de sua casa.
            - O que é isso?! O que está avend... AAARGH! – Seu Nikolai foi interrompido por um sabre atravessando seu peito. As meninas entenderam que se tratava de uma espada: primeiro porque não houve um disparo, e segundo porque escutaram o barulho de uma espada sendo desembainhada.
            - Não importa quem ou o que... Matem tudo o que se mover! – Disse uma voz grave e enérgica vinda do andar de baixo – Ah, se for de seu agrado, senhores, façam o que bem entender. – Disse com malícia e foi seguido por um coro de gargalhadas de igual tom.
            - Ai, meu Deus! Ai meu Deus! – Repetia Leonôra. – Mataram o vovô... Mataram o vovô... – concluiu.
            Como que saindo de um transe, Alana pegou a amiga pela mão e puxou-a com força. Por sorte o escritório do vovô era no segundo piso. Aposento este que, antigamente, era o quarto dos pais da menina. Seu Nikolai dormia na sala, pois dizia que não conseguiria dormir nesse quarto, assim, Alana e ele transformaram a peça em um escritório/oficina de carpintaria. Não era o ideal para uma oficina, mas sofriam o mal de falta de espaço.
            Chegando ao escritório, Alana mexeu num livro. Era o errado. Amaldiçoou-se por não ter prestado atenção na hora em que o agora falecido avô indicou qual o procedimento correto a ser tomado. Tentou outro. Errado de novo.
            - Estavas certa, Lana... Tinha mesmo algo errado com aquilo tudo... – Falou em um estado aparentemente catatônico e com a voz baixa.
            - Merda! Não é esse... Talvez esse?... MERDA! – acompanhou o tom baixo e não deu muita bola para o que a amiga dizia e seguiu tentando.
            - Eles estão chegando... – falou com voz mais baixa ao ouvir que os homens subiam as escadas.
            - Não me apressa porra! Merda, também não é esse! – “Tum... Tum... Tum...” os passos furtivos dos sádicos.
            - Lana... Salve-se, por favor... – Leonôra foi em direção à porta.
            - Cala a boca! Volta aqui! Volta aqui! – Sussurrava com força e continuava buscando o livro-chave correto, agora, sem muito critério para a seleção, puxando qualquer um que estivesse mais próximo as mãos, e sem olhá-los, enquanto girava o resto para falar com a amiga. – Sua retardada! Venha aqui! Venha aqui!
            Leonôra fez que não ouviu e saiu para o corredor.
Alana escutou os soldados
- Hum... Olá, boneca, qual o seu nome?
- Le-Leonôra...
- Nombarathianos tem nomes estranhos mesmo... Mas, veja só você... Não é nada mau, não concordam? – Os demais riram. 0 Vem comigo. Eu nunca estive com uma loirinha antes.
Alana conseguiu abrir a passagem e entrou nela, com todo o cuidado para não ser ouvida. O perfeccionismo do vovô veio a calhar, uma vez que as dobradiças não rangeram e a estante/parede falsa não arrastou no chão quando movida. Fechou e ali ficou. Deitada e com as duas mãos tapando a boca, para melhor segurar o choro.
- Grita pra mim, grita... – Um soldado falou com doçura na voz. – Mocinha... Não foi um pedido. Grita pra mim! – Nada. Alana escutou um tapa. Leonôra gemeu. – EU MANDEI GRITAR! – O som característico de uma espada sendo sacada. Leonôra gritou. – Isso! Assim que eu gosto! Grita mais! – novo grito – GRITA MAIS! – novo grito.
- Agora é minha vez! – Uma outra voz masculina.
- Ainda não terminei, não estás vendo?!
- Foda-se, tem outros buracos.
Todos riram. Alana chorava. Leonôra gritava. Portas arrombadas. Vidros quebrados. Meninas estupradas. Meninos mortos. Velhos mortos. Incapazes mortos. Crianças mortas. Solo manchado de vermelho.
            Quando raiou o dia, os soldados, não há muito, já haviam deixado a cidade. Alana saiu do esconderijo. Correu soluçando em direção a amiga. Ela estava em seu quarto. Seu corpo jazia ali. Sem vida. As lágrimas em suas bochechas ainda estavam molhadas. Seu corpo possuía dezenas de cortes, sendo o fatal, uma perfuração na boca do estômago. Lembrou-se do momento em que a amiga suplicava e do grito mais horripilante que já escutara na vida, então associou a esta perfuração. Deitou-se sobre o corpo nu da amiga e chorou copiosamente tudo o que teve de ouvir calada a noite toda. Chorou pelo avô. No fim, chorou de raiva, por não ter conseguido abrir a passagem secreta a tempo. Quando voltou a si havia quebrado todo o quarto. Não sabia dizer se realmente tinha feito aquilo. Pensou, inclusive, que tivesse pegado no sono. Não lembrava. Pegou a amiga no colo e desceu as escadas. Iria fazer um funeral. Encontrou uma pá nas ferramentas do avô, foi até o quintal e começou a cavar.
Quando voltava para o quarto, notou que a casa estava intacta. Exceto pelo seu quarto, que ela mesma havia destruído, e pela porta da frente arrombada, tudo estava no seu devido lugar. Não entendeu.
Encontrou sua roupa preferida. Deu um banho na amiga. Vestiu-a e a pôs na vala.
Enquanto tapava, chorava, lembrando dos melhores momentos. Ia começar a cavar o túmulo do avô, quando a sensação rotineira de que deveria estar indo para frente da televisão começou a fluir. Sabia que estava próximo do horário do primeiro pronunciamento oficial do dia. Sentia-se estranha. Largou a pá e foi para a sala. A TV ligou. O anúncio de que essa mensagem estava sendo exibida em cadeia nacional apareceu. Alana sentiu o conotativo estalo no cérebro. Era isso que faltara na véspera. Apesar de não ter prestado atenção no que o Soberano dizia, tinha reparado que essa mensagem não havia sido exibida. Perguntou-se o que esse desgraçado vomitaria.
- Meus preciosos cidadãos e cidadãs! Eu, seu querido soberano, Zhalmyr Aquilinoyev, terceiro de seu nome, saúdo vocês por mais um importantíssimo, e vital, dia de trabalho em nossas fábricas e lavouras. Muito obrigado! No ritmo em que estamos, mostraremos a nação rival que não nos abatemos por causa dessa guerra. Guerra sagrada, da qual sairemos vitoriosos! Nossa gloriosa nação Nombarath se manterá sólida para todo o sempre. Esmagaremos todo e qualquer rato asqueroso de Ishtar feito baratas! Tenham um bom dia de trabalho. Trabalhem com gana. Trabalhem com garra! E juntos sairemos vitoriosos!
Alana começou a rir. Gragalhava. Virou as costas e foi cavar o túmulo do avô. Deu-lhe um banho, vestiu-o com seu melhor terno e enterrou.
Juntou suprimentos e roupas. Colocou-os em uma mochila e em uma mala e partiu em direção ao reino neutro de Marok. E enquanto caminhava pelas ruas da agora cidade fantasma de Namkarath, percebeu que, salvo algumas janelas e portas quebradas, todas as construções estavam intactas. E fediam a sangue.

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